Essas palavras estão fluindo justamente no momento emocionante, não menos dramático, em que o primeiro mineiro do desabamento da mina chilena, no inóspito deserto do Atacama, é resgatado com sucesso. Na iminência do salvamento do mineiro Florencio Ávalos, minha mente divaga até uma história que passou para o patrimônio da imaginação humana, o mito da caverna, escrito por Platão. Obviamente, não tem quase nada a ver com a fatalidade ocorrida no Chile que envolveu 33 mineiros, vítimas de um desabamento que impediu a saída destas pessoas e os forçou a conviver em situações adversas por mais de dois meses no interior de uma mina com uma profundidade de 622 metros.
No entanto, o que me fez lembrar do mito da caverna foi a mudança de ambiente dos mineiros ao serem resgatados. O impacto com a luz será inevitável, muito embora tenham óculos de sombra no resgate e paramédicos por toda parte para prestar auxílio. Voltarão para um mundo que já conheciam e não estavam presos voluntariamente. Não queriam estar lá. Se pudessem escolher estariam fora sem passar pelo risco de morte. Ao contrário dos que estavam presos na caverna de Platão desde à infância, acorrentados, com cabeça e pés voltados para o fundo da caverna, sem ver a luz do sol e, de repente são surpreendidos por um deles que tinha se soltado e logo voltado para contar-lhes o que havia visto, a verdade, a luz verdadeira e não sombras da realidade, objetos perfeitos e não cópias da realidade, o que é e não a aparência do que é. Os outros da caverna de Platão, sabendo da verdade, não quiseram sair da caverna, optaram por ficar lá. Platão chega a dizer que se fossem forçados a sair, algo muito pior poderia acontecer, um sofrimento muito maior estavam sujeitos a passar, sendo levados na subida a cometer um homicídio, a matar quem os forçassem a subir.
Repare que se formos comparar as duas emblemáticas situações, uma imaginativa, ideal, a caverna de Platão, e a outra carregada de realidade, puro acontecimento cheio de drama e tragédia, como é o caso dos mineiros do Chile, veremos semelhanças e diferenças. Mas a relação, se não for uma boa pedida, ao menos é uma boa investida.
Os prisioneiros da caverna de Platão e os 33 mineiros refugiados no ambiente de seu trabalho há quase 70 dias. O certo é que os 33 mineiros vão experimentar a passagem como uma viagem lenta entre o refúgio da mina até a superfície. Assim como a Caverna de Platão, a subida da mina para a superfície não é nada fácil, cheio de escarpas, de riscos, de sofrimentos, de obstáculos, enfim... A mudança de ambiente trará certamente confusão e pouco discernimento das coisas, dos objetos, da natureza, das pessoas, do mundo, porém, com um tempo, a vista e a mente se adaptarão ao novo mundo. Diferentemente dos prisioneiros do mito platônico, os mineiros do Chile experimentaram o medo da morte e a angústia de perderem suas vidas, suas famílias, seu mundo fora da caverna. Ao passo que para os moradores da caverna de Platão só existia aquele mundo, o mundo da caverna. O outro mundo era apenas uma possibilidade, pois estavam acostumados com as sombras, teimando que ali estava toda a verdade.
O mais interessante no resgate dos mineiros do Chile foi a presença das novas tecnologias, celulares lá embaixo, há quase 700m, câmeras que intermedeiam as imagens da mina para fora e de fora para a mina, aparelhos de comunicação em que os técnicos conversavam o tempo todo com a pessoa no momento em que estava sendo retirada da mina dentro de uma cápsula. A comunicação audiovisual faz toda a diferença, porque ajuda a acordar a razão ou a adormecê-la, como no caso moderno de grandes e constantes dosagens, mas na medida certa, pode nos tirar da alienação que é uma caverna modernizada, para não soar anacrônico.
Pois bem, se a diferença mais plausível entre a caverna de Platão e a caverna dos mineiros do Chile é o fator sobrevivência, pois não resistiriam lá embaixo por longo tempo, devido às condições adversas, certamente essa experiência entre a vida e a morte poderá marcar a existência dessas 33 pessoas que passaram por uma forte pressão física e psicológica. A vida dessas pessoas não será mais a mesma, uma vez que a carga de pressão e tensão os fez repensar os valores, reavaliar comportamentos, renovar a visão. Que seja ao menos isso, renovar a visão, limpar a visão, ver a vida de outra maneira, já que o mundo deles não é mais aquele ou não é mais o outro que passou, mas um novo, um mundo melhor, descoberto e redescoberto a partir desta nova experiência, a partir de um confinamento cheio de conflitos, carências e no limite da sobrevivência.
Talvez sejam estes os ganhos de sair da caverna, percorrer a subida, experimentar a mudança, viver seu limite, conhecer-se um pouco mais, sobreviver, chegar ao topo e poder contar tudo isso, “o que uma nova vista nos revela”:

“Essa imagem, caro Glauco, terá de ser inteiramente aplicada ao que dissemos mais acima, comparando o que a vista nos revela com a morada da prisão e, por outro lado, a luz do fogo que ilumina o interior da prisão com a ação do sol; em seguida, se admitires que a ascensão para o alto e a sua contemplação do que lá existe representam o caminho da alma em sua ascensão ao inteligível, não te enganarás sobre o objeto de minha esperança, visto que tens vontade de te instruíres nesse assunto. E Deus sabe, sem dúvida, se ele é verdadeiro! Eis, em todo caso, como a evidência disto se me apresenta: na região do cognoscível, a ideia do Bem é a que se vê por último e a muito custo, mas que, uma vez contemplada, se apresenta ao raciocínio como sendo, em definitivo, a causa universal de toda a retidão e de toda a beleza; no mundo visível, ela é a geradora da luz e do soberano da luz, sendo ela própria soberana, no inteligível, dispensadora de verdade e inteligência; ao que eu acrescentaria ser necessário vê-la se se quer reagir com sabedoria tanto na vida privada quanto na pública.”(Livro VII, A República de Platão) Prof.: Jackislandy Meira de Medeiros Silva
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